.
“A gente tem que se adaptar ao ambiente.
Não dá pra ficar se lamentando!”
Luciana Moreira
(Contadora)
1. Qual a sua limitação física?
Eu tenho uma doença
hereditária, chamada doença de Stargardt, e essa doença se desenvolve da fase
da adolescência pra fase adulta. Eu comecei a usar óculos aos 10 anos de idade
mas até então pensava que era um problema normal de visão. Aos 17 anos fui pra
São Paulo de férias e aproveitei pra fazer uns exames de rotina e o médico
disse que eu tinha uns pontos brancos na minha retina mas não sugeriu que
fizesse exames mais profundos. Só voltei ao oftalmologista aqui, depois de uns
3 anos, foi quando descobri que estava com essa doença.
2. Como foi depois
que você soube da doença?
Na época que descobri
perdi a visão muito rápido. Eu senti o impacto de uma vez só porque eu ia pro
cinema, sentava lá na última poltrona e via a legenda normal. Comecei a ir ao
cinema e não conseguia enxergar. E aí foi quando comecei a perceber, hoje ela
está estacionada, mas eu só tenho 10% da visão. Eu não quero e nem posso perder
mais nada né.
3. Mas essa possibilidade
existe? De perder totalmente a visão?
Ela pode estacionar,
pode desenvolver... Na verdade a gente não tem um negócio marcado. A gente vai
trabalhando sempre ali, tendo um acompanhamento.
4. E como é a sua
visão? O que você vê?
Ah, eu consigo ver as
coisas só não consigo ver a forma detalhada. Por exemplo, chegar uma pessoa e
ficar a dois metros de mim, eu sei que é uma pessoa mas se não prestar atenção,
não consigo ver as expressões mesmo da pessoa.
5. O acompanhamento é
feito por quem? Como é?
O acompanhamento é
feito aqui, eu não posso fazer transplante porque não há transplante de retina
né, só de córnea. Há uns dois anos começaram estudos nessa área trabalhando com
células tronco, mas ainda não deu certo e eles ‘tão partindo pra outra
metodologia. Meu médico disse que daqui a uns 5 anos talvez exista um
tratamento ou cirurgia mas até então...
6. E depois da
limitação, como foi sua adaptação? Você usa algum instrumento?
Então, eu comecei a
usar uma lupa, eu uso desde que eu descobri a doença, uma lupa de mesa normal
que eu tenho há uns doze anos. É o meu xodó, que eu fico brincando, chamando de
lupita. (risos) E aí uma médica, esse ano, me indicou uns aparelhos e eu fui a
São Paulo comprar, esse óculos de prisma pra ler e uma lupa digital que me
auxiliar muito no trabalho.
7. São muito caros?
São, e foi tudo do
meu bolso. Alguns me disseram, porque você não pega o auxílio governo? Mas além
de demorado é muito complicado. Como eu tenho condições e trabalho, prefiro
deixar pra quem precisa mais que eu.
8. O contexto social
é propício à adaptação?
Assim, eu já tive
duas experiências com a deficiência. Eu tive um acidente, vai fazer uns 5 anos,
que eu tive que passar 1 ano e meio usando cadeira de rodas. E eu brinco dizendo que é mais fácil ser
deficiente visual que cadeirante. Porque os lugares não têm estrutura pra o
cadeirante, é muito complicado, além de você ter que depender das pessoas. De
certa forma eu sou privilegiada porque meus pais têm carro e sempre me levavam
aos lugares, mas imagine quem depende de transporte público... Na época que eu fazia
faculdade, nem a faculdade tinha estrutura pra eu me locomover. Tudo era sempre
muito complicado, eu nem saia de casa, saia só por alguma necessidade
(faculdade, fisioterapia e médico), evitava. No caso da visão, eu tenho que
evitar algumas coisas, por exemplo dirigir, ainda tenho uma dependência pra me
deslocar porque não posso pôr minha vida e a dos outros em risco. E pegar
ônibus também é um pouco difícil porque as letras são pequenas e já aconteceu
de pegar ônibus errado, e tenho que perguntar às pessoas o tempo todo quais os
ônibus. Nem ando mais.
9. Como é a sua
experiência no mercado de trabalho?
Quando comecei a
faculdade eu já trabalhava numa empresa e eu passei toda minha graduação
trabalhando nessa empresa. Eu nunca entrei num emprego por ser PCD (Pessoa Com
Deficiência), no emprego que estou atualmente, eu que me ofereci. Concorri à
vaga normalmente, como qualquer outro profissional e falei, porque eu acho isso
importante, a gente tem que ser sincero, e eu não posso ter vergonha de uma coisa.
Disse que precisaria de uma tela de computador maior, porque usava lupa, deixei
isso claro durante todo o processo e lá dentro da empresa eu disse: oh, eu
tenho baixa visão, então se você quiser e precisar que eu me enquadre como
portador de deficiência eu to disponível e pra eles assim, foi juntar o útil ao
necessário né, porque eu rendo como um funcionário normal e até mais, porque eu
não posso ser modesta e me desprezar como profissional, eu sou muito dedicada
no que faço, até por ter essa deficiência eu tenho que provar pra mim mesma que
eu sou capaz e também isso faz com que eu não deixe passar nenhum detalhe,
passar nada nas minhas análises. O pessoal da empresa até brinca dizendo que eu
sou meio cricri, organizada demais, tudo no lugar assim... Eu sempre brinco
dizendo que Deus disse: eu só vou lhe dar 10% de visão porque se eu lhe der
100% ninguém lhe agüenta. Comigo não tem isso de: ah, deixa a bixinha, ela é
PDC. Não, eu agüento tudo... Quando eu não agüentar eu aviso!
10. Tem mais algum
PCD em sua empresa?
Tem uma menina lá no
escritório há duas semanas que é deficiente auditiva, mas na verdade a gente
não se comunica muito. Só dei uns toques a ela, porque como minha mãe também
usa aparelho eu dei uns toques do telefone e tal. Mas na minha área só tem eu
mesmo, porque eu trabalhava na área administrativa e agora trabalho como
contadora mesmo. Eu sou a única portadora de deficiência com nível superior da
empresa. Tem mais uns três que trabalham no campo, mas com deficiência na parte
física né, porque pra ser PCD tem que ter alguns critérios. Eu até tava
perguntando ao médico no meu caso quantas pessoas tinham aqui em Petrolina com
a minha doença e ele disse que tem duas ou três pessoas.
11. E a sua relação
com as pessoas? Como foi na faculdade, em casa, no trabalho, no dia-a-dia?
Os meus amigos do trabalho
às vezes esquecem e dizem: Lu, vê isso aqui pra mim. E eu digo: Melhor você
ler, porque pra eu ver ta mais difícil. (risos) Mas a relação é normal. Eu
também sou muito, quem não sabe que eu tenho problema de visão não sabe e nunca
vai saber porque eu não deixo transparecer nem me aproveito disso. Eu acho que
o preconceito começa com quem tem... Tem pessoas que porque tem alguma
deficiência se aproveitam da situação pra se passarem por coitadinhos, andam
sujos e isso a gente vê muito. Eu até
passei por uma situação interessante... Eu estava numa loja, foi até quando eu
era cadeirante, na porta da loja esperando alguém e um senhor passou e disse:
Toma, dez reais pra lhe ajudar. E eu disse: moço, não precisa. Porque eu não
tinha necessidade alguma.Tem pessoas que olham com pena, pensam que os
cadeirantes são coitadinhos. Mas a pessoa tem que se impor, é uma questão de
adaptação mesmo. Por exemplo, eu parei de enxergar as legendas no cinema né,
daí eu comecei a aprender inglês. (risos). Na faculdade eu sempre tive
apoio dos meus colegas, um grupo que estudo que começou no primeiro período da
faculdade e são meus amigos até hoje. Eu via o quadro todo branco, mas minha
audição ficou potencializada e meu raciocínio é muito rápido, então eu acabo
aprendendo muito rápido. E nos fins de semana meus colegas me passavam todo o
assunto escrito e nós estudávamos juntos, todo fim de semana. Houveram duas
experiências desagradáveis com dois médicos, um que olhou pra mim e
disse: você não enxerga, pronto e acabou. Eu disse: ta bom, beleza, tranqüilo.
Mas como nem sempre um único médico tem a razão, eu fui a outro que disse a
mesma coisa de outra maneira... Disse que eu pudia fazer muita coisa, mas tinha
uma limitação. E outra que falou comigo como se eu tivesse ali me fazendo se
coitadinha pra pegar o beneficio no INSS e eu disse: minha filha, você não tem
noção do quanto eu quero voltar a trabalhar e ter minha vida normal. Não fique
pensando que eu tô aqui sem querer trabalhar por isso ou aquilo, primeiro você
tem que me respeitar como pessoa, ser humano. Porque você ta aí como médica,
mas como você fez faculdade eu também fiz. Você não pode me tratar como
ninguém. Então todo tipo de gente tem preconceito, desde um médico, um PhD, a
uma pessoa com menos instrução.
12. O que você
gostaria de dizer às pessoas que tem deficiência e às que não tem?
É complicado. As
pessoas têm que tratar a gente da melhor maneira possível, porque somos
normais, temos apenas uma limitação que eu vejo assim: tenho uma deficiência e
tenho que me esforçar mais em determinada situação, pronto. Mas é normal. E às
pessoas que são portadoras de deficiência, que não façam disso um escudo pra se proteger ou querer tirar
vantagem de certas coisas porque acho que isso é desnecessário embora a gente
saiba que 90% ou até mais do que isso, faz disso um oportunismo. Inclusive, eu
fui morar em outra cidade por um tempo pra medir minha capacidade e passei dois
meses lá, voltei por questões outras mas minha limitação nunca me impediu de
nada, viajo pra todo lugar sozinha, de avião e pergunto quando precisar: moça,
onde é o portão tal, não tem que ter vergonha não. Tem pessoas que sofrem
porque não tem nível cultural ou financeiro maior não conseguem se desenvolver
sozinhas né, mas existem muitas limitações sociais também que os impedem de se
mover. Mas muitas vezes as limitações começam em casa com a falta de autonomia.
Mas enfim, você deve fazer o que a sua limitação lhe permite fazer. Eu
perguntei uma vez ao meu médico: eu posso ficar cega? Ele disse: pode! E ele
disse: você pode ficar cega, eu posso ficar cego antes de você. Eu não posso
sofrer hoje por algo que eu nem sei se vai acontecer. Eu nunca imaginei que um
dia pudesse ficar assim e fiquei. Eu sei que quando eu estiver com 60, 70 anos
com certeza vou estar sem entregar, mas não posso sofrer hoje por algo que vai
acontecer daqui a muito tempo, é muito relativo. Então a gente tem que se
colocar diante das possibilidade de hoje!
Nenhum comentário:
Postar um comentário